
Validando o sentir-se mal
- Marina Soncini
- 15 de ago. de 2023
- 4 min de leitura
Atualizado: 24 de nov. de 2023
Eu costumo militar pelo aprendizado do e no amor. Aprender através do afeto, do cuidado, e não somente pelo sofrimento e pela dor. Sei que a dor ensina. Ensina muito, isso é inegável. Mas eu insisto em acreditar e em me lembrar (mesmo quando me custa muito) que tem que ser também possível aprender pela paz e pelo cuidado, e que temos direito a ser amadas mesmo quando estamos na merda.
Eu particularmente nunca tive dificuldade com a tristeza. Sempre foi fácil deixar ela existir, e eu sempre soube que me levaria além. Mas venho me questionando até que ponto eu tenho usado essa facilidade como cola para me prender no chão e, consequentemente, tenho esquecido de outras formas de viajar. Me sinto constantemente insuficiente e pouco válida. Me sinto constantemente tendo que provar que sou merecedora de alguma coisa, desde as mais sutis até as mais profundas. Obviamente, isso culmina em também sentir que não sou suficientemente boa para receber amor e pouco merecedora de ser amada.
Hoje, escrevendo minhas páginas matinais, eu me deparei justamente questionando a mim mesma se escolher continuar em alguns sofrimentos -as vezes inconscientemente- não tem a ver precisamente com uma justificativa interna de que assim vou merecer alguma coisa que seja. Porque de alguma forma, em algum ponto, essa foi a maneira que eu encontrei de me sentir menos culpada. Não consigo pagar as contas, mas optar por não pedir ajuda demonstra que sou forte, e isso sim é algo válido de recompensa. Pedir ajuda pode me trazer uma parcela de solução, mas me faz perder o único fiozinho de ilusão de validez que consigo manter - o de ser uma mulher que aguenta. Batalhadora.
Porque o sistema nos ensinou que pedir ajuda era sinal de fracasso. Que uma mulher forte dá conta de tudo e que sendo assim se vai longe. Que você deve ser independente e não precisar de ninguém. Que deve ser revolucionária, autossuficiente, autônoma, competente, conhecedora de si mesma, espiritualizada, a própria luz em pessoa. E feliz, claro. Sutil, sempre que possível. Isso é pura bobagem e, ainda que racionalmente o sabemos, às vezes custa sentir. O patriarcado e o capitalismo fazem com que a gente queira se provar o tempo todo, nos convence que ser o que somos não é o bastante nunca, e que a única forma de crescer é pelo sofrimento e exaustão, porque é isso que resta pra uma mulher -que pode ainda ser pobre, dissidente, preta, imigrante. Ao menos é isso o que nos joga na cara, objetiva e subjetivamente, o sistema, o país, a ley de extranjería e as leis que regem a sociedade em geral.
Até onde está enraizado a crença de que somos menos por ser alguma outra coisa? Considerando todas as demandas reais da vida que, claro, temos que manter, parece impossível ser -só- uma mulher. Cheias de problemas e sem nenhuma ideia de como resolvê-los; sem um tostão na conta bancária no final do mês porque tem que bancar a família sozinha; sem tempo pra se descobrir e viver sua melhor versão porque precisa cuidar dos pais doentes; sem conseguir sair de uma relação merda porque depende financeiramente do cara. Como se permitir ser cuidada, ser ajudada e ser amada dentro de todo esse turbilhão? Como sequer entender todas essas nuances que nos atravessam e que nos impõem tantos padrões, alguns inclusive disfarçados de um “caminho interno de cura” extremamente vazio e superficial?
E dentro de tanta exigência e cobrança, eu me pergunto: o que sobra de nós pra nós mesmas? Sobra psicológico pra alguma coisa além do desespero? Sobra espaço pra descobrir o que nos gusta e o que não? Se encontra algum caminho para fugir da culpa? Porque aqui vem o bônus track, o inevitável: sentir-se culpada. Por não alcançarmos nada do que dizem que deveríamos, por não conseguir ter um bom emprego, por ter interesses próprios que "não levam a lugar nenhum”, e às vezes por pedir ajuda.
É quase lógico que nos sintamos insuficientes e desencaixadas, mas saber disso não faz com que seja menos dolorido. Perceber dia após dia que a tentativa de sobreviver acaba por te afastar de ti mesma, dos sonhos que você ainda sonha em poder ter, se torna ainda mais adoecedor por não ter como sair dessa situação. A grande maioria não tem como sair. Fazer de si mesma o seu principal projeto não é pra qualquer uma porque em muitos momentos pode não ser só uma opção de escolha. Sentir que não tem espaço no mundo para quem a gente é, pra quem a gente acha que gostaria de ser, para quem a gente tenta trabalhar interna e duramente para ser pode representar um baque pra quem teve essa percepção tardia, ou um peso de longa data pra quem vive com essa mochila faz tempo. Independente da situação, em alguns momentos tudo isso borbulha com uma força tão grande que quase sufoca.
Estar em todos os lugares, ocupando os espaços, fazendo o seu melhor, se responsabilizando pelo que é seu -e o que não é- não preenche a caixinha da completude, e às vezes só piora a sensação de não ser merecedora. Porque a recompensa nunca chega, é ilusória. Porque normalmente a caixa foi criada por um sistema cruel com a gente, e é uma caixa sem fundo, não foi desenhada para ser preenchida. E a la mierda pra quem só nos diz para relaxar e ficar tranquilas, porque é óbvio que a gente já pensou nisso sozinhas e obviamente não vem funcionando.
Quem sabe temos que começar a entender que o sentimento de insuficiência é, realmente, parte do que nos faz ser plenamente merecedoras e suficientes nesse sistema tão hostil. Se permitir perceber que ter outras mãos moldando o nosso caminho, além das nossas próprias, não invalida nossa independência ou nossas particularidades, sino que nos possibilita regar um solo mais fértil para crescer muito mais alto e enraizar ainda mais fundo, em comunidade.
Porque aprender através do amor e aprender a amar passa, inevitavelmente, pelo coletivizar as vivências e validar os sentires. Seja uma tristeza ou uma alegria. Hoje eu consegui escrever esse texto, mas amanhã pode ser que eu não consiga levantar. E -respira fundo- por hoje tudo bem. Não há história que não seja coletiva, no fim. E temos muitas histórias ainda para (re)escrever juntas.







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