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Na minha estante

  • Foto do escritor: Marina Soncini
    Marina Soncini
  • 19 de jun. de 2024
  • 2 min de leitura

Essa semana marcou um pouco o início do fim. Depois de algumas voltas no mesmo lugar e outras quantas em sítios distintos, eu soltei pros quatro ventos que logo a maré vai me levar de volta pra casa. Há poucos dias, eu comecei a desfazer meu apartamento. Tirei os quadros das paredes, tirei várias roupas do armário e deixei a cozinha já bem mais vazia. Desfiz minha estante, que foi a primeira coisa que eu preenchi quando eu cheguei. 


Tinha um pouco de tudo nela. Um pouco do Brasil, um pouco da España; um tarô, uma vodka, livros de gramática e meu coletor menstrual sempre por ali. Era branca, mas também era verde, vermelha e azul. Tinha coisas que eu ganhei, coisas que eu achei e outras que eu nem sei como foram parar nela. Pedacinhos coletados das pessoas que passaram e das que ficaram. Tudo muito bem desorganizado, como eu. 


Tinha muito de mim naqueles degraus. Partes da Marina que chegou e colou com fita crepe as fotos que trouxe na mala. Muito da Marina que eu fui sendo enquanto estive aqui, e que convenhamos, por si só já foram várias. E agora da que vai embora. E é impossível não pensar em todas elas enquanto eu vou tirando cada enfeite que eu coloquei na minha estante com tanto carinho. 


Existe uma Eu que só existe aqui. Ela não vai cruzar o oceano. Se despedir dela é quase tão doloroso do que se despedir das pessoas que eu amo, porque ela é, justamente, uma mistura dessa gente. De quem me permitiu construir a minha estante. Essa prova pouco concreta do quanto me foi permitido amar nessa cidade de tanto concreto. A lembrança viva das novas formas de ser eu mesma que eu descobri através desses afetos, que agora talvez deixem de ser rotineiros. 


Eles couberam todos na minha estante. E exatamente agora alguns viajam numa caixa apertada pro outro lado do Atlântico. Outros eu deixei aqui, pra me fazerem companhia até o final; e alguns ainda vão ficar em terreno espanhol, como uma lembrança da que nunca quis ir. Daqui pra lá, são novos andares, que vou caminhando e criando ainda meio perdida. Minha estante já não é mais tão minha, mas talvez eu continue sendo ela. 


Talvez a que veio e a que volta se encontram, precisamente, no estilo de decorar cada prateleira. No apreço e no medo pelo novo começo. E eu reconheço na volta a mesma certeza da vinda: sem muitas explicações, mas com os poucos porquês essenciais. É provável que eu leve muito mais do que eu consigo ver agora, e que a Marina barcelonesa ainda tenha muito a me mostrar. Muito a amar. Aqui y lá. 


Daquele jeito desajeitado, espero voltar a encaixar o que eu puder nos lugares que couber. Vou chamar gente nova pra me ajudar a decorar novas paredes. Vou descobrir quantas estantes ainda vão fazer parte da minha vida, enquanto monto e desmonto as minhas próprias partes. E se um dia eu esquecer e precisar lembrar, que o tempo me mostre que eu sei exatamente onde eu guardei cada pedacinho desse lar. 


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© 2021 por Marina D. Soncini.

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